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Professor Leonardo Campos reflete o Legado e o Impacto Cultural de Sex and The City


Foto: Arquivo pessoal

Professor Leonardo Campos, como nós costumeiramente fazemos em nossas entrevistas,

versa para os nossos leitores sobre o que pode ser encontrado neste livro.

O material que o leitor encontrará neste livro é embasado em uma das minhas atuações profissionais, a crítica de cinema, gênero discursivo que aqui, foi adaptado para a análise das temporadas, dos livros e demais produtos envolvendo o legado e o impacto cultural do universo de Sex and The City. Como críticos, agimos numa tarefa semelhante a do historiador, desenvolvendo análises responsáveis por registrar, catalogar, hierarquizar, comparar, dentre outras atribuições que definem o exercício da crítica. Gosto sempre de me fincar no ponto de partida, neste caso, o livro de crônicas de Candace Bushnell, para depois avaliar a série, os filmes inspirados nos personagens televisivos e seus derivados, numa busca por compreender como Sex and The City deixou a sua marca enquanto entretenimento, bem como reflexão para as pessoas que acompanharam a jornada de consumo, relacionamentos e vivências do quarteto nova-iorquino, conhecido por estabelecer direcionamentos para o seu público.

Como se deu a sua relação com Sex and The City?

Sou da época das videolocadoras e “antigamente”, locávamos filmes. As produções seriadas eram algo bem mais raro. Com o advento do DVD, o mercado logo investiu em disponibilizar as séries televisivas no formato, geralmente por temporada. Quando comecei a trabalhar na GPW Videolocadora, uma das maiores referências em Salvador, estabelecimento com um acervo considerável de clássicos, raros e lançamentos, iniciei a cultura das séries como parte integrante dos meus momentos de entretenimento. Sex and The City foi paixão à primeira vista, “devorada” na primeira noite em que comecei a assistir. Eu me identifiquei bastante com a trajetória das personagens e consumi, lembro-me como se fosse hoje, a primeira temporada ao longo de uma noite de terça-feira e na manhã do dia seguinte. Dali em diante, foi rápido. Logo começaram outras séries e não demorei a inserir produções episódicas como parte do meu acervo pessoal.

Então muita gente acredita que a série seja exclusivamente direcionada para o público feminino?

Sim, Sex and The City é uma série sobre quatro mulheres e suas peripécias na vida pessoal e profissional em uma das cidades mais badaladas do planeta. E quando dizemos mulheres, nem podemos expandir muito, pois numa observação retrospectiva, percebemos que não havia representação mais ampla, numa redoma de privilégios para realidades femininas brancas e heterossexuais, situação refletida e ampliada quando o revival foi lançado recentemente. Esse não foi um problema exclusivo do programa, mas parte da realidade cultural de uma época. Ainda assim, acho que Sex and The City retrata questões “universais” no âmbito dos relacionamentos amorosos, das expectativas, em linhas gerais, das transformações que o mundo inteiro vivenciou nas últimas décadas, tais como o preservativo como necessidade de sobrevivência numa era posterior ao HIV e, com isso, mudanças nas dinâmicas dos contatos humanos, além da internet e do celular como modificadores da maneira como interagimos com nossos interesses sexuais, dentre tantas outras coisas envolvendo padrões tradicionais, desejos há eras sufocados pelas regras rígidas universalmente tidas como ideais numa existência de julgamento do “outro”, etc.

Quando o revival saiu, a sua crítica foi bastante favorável. Foi um texto de fã ou a sua análise passou por um crivo que focou no distanciamento?

Sempre mantenho o foco. Pode ser a análise de um filme slasher, de um novo álbum da Madonna ou qualquer outro tipo de produção artística que seja parte integrante das minhas preferências. Não por questões supostamente éticas, mas porque não consigo desenvolver uma análise favorável de algo que realmente não me agradou. Sobre Sex and The City, mesmo sem Samantha Jones, uma personagem forte e magnética com seu público, a série conseguiu demonstrar de maneira orgânica dos desdobramentos de questões gerais na vida dos personagens que retornaram. Lidar com a velhice, compreender o mundo diante de mudanças tão vertiginosas desde o lançamento do último filme deste universo, numa demanda que ainda trouxe para os realizadores a tarefa de refletir os erros do passado e reajustá-los na atualidade, como por exemplo, a representação racial e de gênero, mais adequada com os discursos contemporâneos não exatamente “politicamente corretos”, mas justos.

E sobre os filmes: você acha que a série expandiu bem para o formato cinematográfico?

De maneira alguma. Como cinema, Sex and The City se revelou um grande equívoco. Os diálogos expandidos, o desenvolvimento do roteiro, as necessidades dramáticas dos personagens e o tempo de duração excessivo prejudicaram a versão cinematográfica deste universo ficcional. Agora, com o retorno das tramas para o formato televisivo, podemos comprovar o quão seu funcionamento seriado é mais fluente e envolvente.

Sex and The City também ganhou um derivado, intitulado Os Diários de Carrie, focado na juventude da protagonista Carrie Bradshaw. O que você achou da produção?

Acho que o seriado conseguiu resgatar peculiaridades da protagonista interpretada por Sarah Jessica Parker e ajusta-las no âmbito da juventude da personagem. O contexto: anos 1980, uma era de profundas transformações sociais. O sexo, então, teve a sua concepção bastante modificada com o impacto da AIDS e isso é devidamente trabalhado na produção que ainda debate questões sobre relacionamentos familiares e profissionais. Seu formato em 40 minutos talvez ficasse mais enxuto e dinâmica com a mesma proposta da série que serve como ponto de partida, mas não atrapalha. O cancelamento veio com o final da segunda temporada, deixando algumas coisas em aberto, mas fechando determinados ciclos de maneira eficiente.

Agora fala de Sex and The City na sala de aula. Soube que até mesmo no Ensino Médio houve uma ocasião de trabalho com um episódio.

Em componentes curriculares do Ensino Superior, utilizei episódios em situações de análise e reflexão para produção textual, bem como na discussão sobre Relações entre Campo e Cidade, Planejamento Urbano e Qualidade de Vida, tema de atualidades selecionado pelo INEP para o ENADE 2022, realizado pelos cursos de Comunicação Social da instituição de ensino em que atuo. No episódio em questão, refletimos sobre a dualidade entre campo e cidade, rural e urbano, situação proposta pelo roteiro que coloca Carrie Bradshaw para vivenciar um final de semana com o seu companheiro em um rancho que é o oposto das dinâmicas de seu cotidiano numa grande metrópole. Ademais, sobre Ensino Médio, sim, debati com os estudantes o episódio O Direito das Mulheres de Comprar Sapatos, da sexta temporada, no componente curricular Projeto de Vida. A protagonista perde um par de sapatos que muito estima depois de retirá-los num chá de bebê, por sugestão da anfitriã, preocupada com os seus pequenos. É uma solicitação feita para todos os convidados, mas Carrie é a única que tem os seus sapatos furtados. Ao questionar, a dona do evento se nega a pagar por um novo par, pois considera o valor uma extravagância da convidada, isto é, alguém que não tem preocupações reais como filhos e marido. Daí, se inicia um debate sobre o casamento como padrão de vida, sendo as solteiras vitimadas pela opção que fizeram no andamento de suas vidas. É um episódio que rende bastante, funcionou quando utilizado e provavelmente será trabalhado mais vezes noutras ocasiões.

Mesmo sendo um homem gay cis, você pode dizer que se identifica com alguma das quatro personagens principais?

Hoje debatemos questões sobre lugar de fala e correlatos, mas acho que esse lance de identificação tem muito a ver com alteridade, sabe? Das quatro personagens, me identifico mais com Carrie Bradshaw, interpretada por Sarah Jessica Parker. Ela escreve, tem uma vida badalada, tomada por inseguranças de diversos tipos, inclusive na seara dos relacionamentos, sendo muito paradoxal no âmbito de seus sentimentos, algo que a torna muito próxima do humano, mesmo que em muitas passagens, deixe de ser realista e idealize demais as coisas que gravitam em torno de sua existência. Isso não impede, no entanto, traços de identificação com as demais personagens. Samantha Jones inspira com a sua determinação no ambiente profissional, além de ser aquilo que chamamos de “desbloqueada” por aqui, uma pessoa que experimenta de tudo no sexo e nas relações e vive blindada para não se ferir no perigoso jogo dos sentimentos. Com Miranda Hobbes, o lado profissional e a dose excessiva de realismo no âmbito dos contatos com os homens criam alguns laços de identificação também. De Charlotte York, acho que podemos falar do idealismo, a vontade de encontrar uma pessoa perfeita para dividir momentos, comportamento considerado parte do mito do amor romântico, mas algo que muita gente, inclusive quem vos fala, pensa para si, mesmo sendo tão complicado.

Ainda nesta seara, as seis primeiras temporadas representaram bem o universo dos homossexuais, haja vista o protagonismo de quatro mulheres heterossexuais?

Não. Com exceção do revival, as temporadas e os filmes de Sex and The City possuem uma visão estereotipada dos homossexuais, apesar de retratar, com humor e proximidade ao real, a arena de disputas e estilos entre Stanford, amigo de Carrie, e Anthony, amigo de Charlotte, personagens que chegam a se casar na abertura do segundo filme da franquia. Essa é uma das principais críticas recebidas pela série, transmitida de 1998 a 2004, com situações que são a “cara” das representações desta época na televisão. Faltou mais engajamento com pessoas que tivessem o “lugar de fala” para se debater um universo tão peculiar, mas não é algo “culpa” de Sex and The City, mas uma realidade de um período específico da história de nossa cultura e de suas representações. Gays e vínculos com celebridades, academia, dentre outros temas são expostos ao longo das temporadas e dos filmes, nalguns momentos com observações pertinentes, noutros com alguma dose de descuido. Numa era de reparações, por sua vez, as questões de gênero ganharam visibilidade e firmeza no revival, pelo menos, uma retratação adequada.

E sobre a análise das questões raciais em Sex and The City. Você publicou um artigo sobre o assunto. Comenta para os nossos leitores?

Sim, foi um texto publicado no Portal Plano Crítico, na ocasião de lançamento da crítica do revival de Sex and The City. A análise faz uma abordagem dos episódios que debatem questões raciais, consideradas inadequadas, mas como exposto anteriormente, parte do fluxo das coisas na televisão entre os anos 1990 e começo da década de 2000. Primeiro, fiz uma observação dos personagens negros ao longo das seis temporadas, dos dois filmes e do revival. Depois, tabulei as representações e, como resultado, podemos observar que faltou representatividade em Sex and The City, em especial, por Nova York ser um lugar multicultural, um caldeirão racial fervilhante dos Estados Unidos, indevidamente representado num programa com protagonismo branco e heterossexual. Mas, como dito, são coisas que não diminuem o legado e o impacto cultural da produção, potencializando discussões, mas sendo devidamente corrigido na atualidade, com a chegada do revival, aprovado para uma segunda temporada.


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