Olá estudante, como estão os estudos?
Professor Leonardo: Ética, Democracia e Cidadania são conceitos distintos, mas pensados em sua abordagem como uma linha de pensamento. Comenta para os nossos leitores esta associação?
A associação dos conceitos é um dos diálogos propostos pelas linhas de temas em Conhecimentos Gerais, dispostas pelo INEP para a realização da prova de Atualidades do ENADE. Podem ser refletidos dissociados, mas também pensados em conexão, como uma linha de direcionamento para debate. Neste caso, a democracia pode ser explicada como uma forma de governo que é pautada no respeito ao que é plural, um regime que defende a transparência de processos e busca garantir a rotatividade do exercício do poder, além de buscar o pleno exercício da sociabilidade, focado na justiça, igualdade e equidade. A ética, dentro desta linha de pensamento, é o conceito que na prática, efetiva, concretiza e realiza a democracia, tornando o modelo algo que vai além dos seus planos de intenções, transformando-o no valor máximo do Estado de Direito. A cidadania, por sua vez, é o conjunto de Direitos e Deveres que permite ao cidadão participar da vida política e da vida pública, algo que requer debates de pautas focadas em princípios éticos, materializada nas condutas cotidianas, tendo em vista o bem comum de todos. Em linhas gerais, precisamos viver numa sociedade democrática regida por princípios éticos e que todos possam gozar plenamente dos privilégios de suas cidadanias.
Ao versar sobre o assunto, em especial, do conceito de Ética, encontramos muita gente que sequer compreende o termo, como você expôs em sua palestra. O que, afinal, é Ética?
Conceitualmente, ética não é algo muito fácil de debater, pois enraizado por diversas áreas do saber, acabou se diluindo em concepções equivocadas. Do grego “ethos”, ética designa caráter cultural e social que define a maneira de se, o espírito de uma época ou de um povo, tendo em seu sentido agregado um vínculo com aquilo que chamamos de moral. Basicamente, a ética diz respeito ao estudo do que é fronteiriço entre aquilo que é considerado certo ou errado, bem ou mal, dentro de uma determinada época e de uma determinada sociedade. Ser ético, então, é estabelecer princípios indispensáveis em seu agir no que concerne aos meandros da prática cotidiana coletiva, é a transformação de sua morada humana em algo melhor, reflexão filosófica do seu agir social. Ética, nas palavras de Cortella, é exatamente o modo como nós compreendemos três grandes questões da vida: devo, posso, quero. A ética estabelece valores e princípios como regras e normas de sobrevivência, pois como a necessidade do ser social é viver em sociedade, precisamos compreender quais os valores que determinam o ser nesta dinâmica em sociedade, compreendendo qual influência esta tem na constituição dos valores éticos. Sendo assim, por esse dinamismo, a ética faz parte das necessidades dos homens em suas respectivas convivências em relações estabelecidas no processo de construção histórica de uma sociedade.
Confunde-se, então, o conceito de ética e com o de moral?
Exatamente, a moral é uma espécie de sistema de costumes e de exigências que viabiliza a relação entre as várias esferas da vida dos indivíduos numa sociedade. Moral vem de costumes e tradições, conectada com a cultura de cada povo e não deve ser confundida com puritanismo, moralismo e coisas do tipo, convenientes com determinados grupos que desejam ter prevalecidos os seus ideais, mesmo que isso interfira na liberdade de expressão do outro. Como traz a teoria, a moral é plural, são muitas morais, a depender do contexto de onde se fala. No senso comum, fala-se muito de moral aliando com proibições e obrigações formais, mas o seu conceito vai além. A moral apregoa uma existência dentro de determinados padrões de conduta para que possamos nos relacionar de maneira minimamente harmônica. Em linhas gerais, a moral se concretiza na prática cotidiana dos indivíduos, está presente no convívio social desde os tempos primitivos, é uma espécie de guia de conduta de regras e se apresenta como um sistema mutável, historicamente determinado, de costumes e imperativos que propiciam a vinculação de cada indivíduo.
Interessante a colocação do Técnico de Enfermagem sobre o Código de Ética e das relações profissionais.
Ética é algo como norma de conduta, advindo de outro campo de estudos, a deontologia, conceito que vem do grego “déontos” e que significa “necessidade” ou “o que deve ser”, constituindo-se em parâmetros morais e éticos expressos em formas de princípios formais e normas jurídicas, congregando o conjunto de regras e princípios para o exercício de uma dada profissão, por exemplo, como os habituais Códigos de Ética das diversas áreas em que atuamos. Em linhas gerais, a ética serve para que haja um determinado equilíbrio entre o bom funcionamento social, possibilitando que nenhum cidadão tenha os seus desejos prejudicados. É uma ciência da moral que busca questionar por que e em quais condições determinada ação pode ser considerada boa ou má. No código dos jornalistas, há uma série de direcionamentos sobre como a profissão deve ser conduzida para o bem-estar coletivo, assim como no caso dos enfermeiros, médicos, professores. A pergunta de um participante de nosso encontro sobre a opressão sofrida pelos técnicos de enfermagem, tratados com descasos por alguns enfermeiros graduados, por exemplo, ajuda a entender a ética, os seus códigos dentro do campo profissional e as posturas que ferem o que neste documento se encontra previsto. A tal opressão comentada, por exemplo, vem da ideia de que os técnicos seriam menores, espécie de serviçais dos enfermeiros com graduação, profissionais que supostamente exercem atividades superiores, mais elevadas, o que na verdade é uma falácia, pois todos os integrantes do sistema que estrutura a saúde devem ser respeitados igualmente, dentro de seus direitos mais básicos.
Para o debate sobre ética, você trouxe Mar Adentro, Efeito Borboleta e Ponto de Mutação, três clássicos do cinema moderno. Por que cada um desses?
Uma sociedade ética deve ser norteada pela integridade, honestidade e justiça. Ações devem ser guiadas pelas normas para o bom convívio de todos, num tecido social urgido por pessoas caridosas, honestas, íntegras, prestativas, tolerantes, sinceras, dentre outras características. Ademais, a ética alcança se auge quando somos tolerantes, respeitosos com a diversidade e a opinião do outro. São tópicos que delineio ao passo que comento os filmes mencionados na palestra e em sua pergunta. Mar Adentro é uma amarga história sobre mudanças vertiginosas que tomam as nossas vidas para sempre. Em seu debate, temos a polêmica acerca da eutanásia, destacada quando o protagonista da narrativa decide lutar pelo fim de seu sofrimento, após ficar tetraplégico durante um mergulho. É direito seu ou se matar antes do tempo é uma maneira de desequilibrar e desestruturar a firmeza de uma sociedade embasada em seus princípios mais éticos? Gosto de comentar Efeito Borboleta para refletir sobre ação e reação, alegorizados em todo o filme, isto é, uma atitude cometida agora e os seus desdobramentos no futuro, não apenas em sua vida, mas na existência daqueles que gravitam ao redor de seu cotidiano. Dogville, com Nicole Kidman num desempenho sensacional, também traz uma discussão pertinente sobre ética, cidadania e a relação de pessoas dentro de uma curiosa comunidade, delineando o lado de cada um dos personagens em seus erros e acertos enquanto seres humanos numa dinâmica coletiva. Ademais, Ponto de Mutação, distante da ideia de entretenimento dos demais, é aqueles filmes mais cifrados, focado em debates filosóficos, sendo um deles o seguinte: e se você criasse algo incrível, para o bem da humanidade, mas infelizmente, fosse usado para causar malefícios por deturpadores, o quanto de responsabilidade, neste processo, você teria?
No mundo contemporâneo, em especial, em nosso Brasil politicamente polarizado, o conceito de democracia também parece deturpado. Falta de leitura?
Nas palavras de Abraham Lincoln, salvaguardado o seu contexto de exposição desta máxima, “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. O que se tem hoje é a percepção equivocada de política de maneira geral. Achar que todas as decisões estão nas mãos do presidente, que não há vetos, poderes articulados, tampouco leis que determinados tetos e limites para determinadas escolhas. Ser democrático é uma coisa e perder as estribeiras da civilização é algo completamente diferente. Tem gente que acha o perfil democrático liberal demais, outros apregoam que deveríamos voltar para os tempos da Ditadura Militar, uma era “onde supostamente as coisas eram mais respeitosas”, enfim, uma série de equívocos amontoados, geralmente articulados por aqueles que buscam limitar o direito alheio em prol de suas crenças. Já testemunhei relatos de pessoas dizendo que o feminicídio é culpa da democracia, pois hoje as mulheres encontraram direitos demais e estão sem limites, deixando os homens com ódio, acredita? O ideal é que independentemente de partidarismo, as pessoas deveriam ler mais sobre política e sair das suas zonas de conforto onde a defesa do que lhe interessa geralmente ultrapassa qualquer nível de bom-senso, isto é, se atinge aquilo que é a minha crença, então eu preciso ferir até mesmo o que é constitucional. O lance é ter atendido aquilo que me agrada, sabe? Ademais, numa democracia moderna, temos estabelecido o conceito de representação, isto é, os cidadãos possuem o direito de eleger os representantes que assumirão as suas questões por meio da vontade popular. Votar e ser votado, participar da elaboração de leis e o exercício de funções públicas são algumas das previsões dentro de um regime democrático. Isso é o básico para o entendimento do que é uma democracia, mas muita gente sequer tem noção, acreditando que tomada de poder, retorno do militarismo e outras coisas resolverão as suas vidas. É o cúmulo da desinformação.
E sobre o conceito de cidadania. Em sua palestra, você pontuou que se discute muito o conceito, mas pouco se reflete sobre sua aplicação precária. Explica para os nossos estudantes leitores este conceito e o seu ponto de vista sobre a tal precariedade?
Cidadania é um conceito amplo que versa basicamente sobre Direitos e Deveres. Ser um cidadão pleno é participar dos Direitos Civis, Direitos Sociais e Direitos Políticos, tendo como base as reflexões de T. S. Marshall, elementos articuladores da cidadania moderna. O cidadão ativo deve participar diretamente do processo de deliberação sobre o que é demanda social, tais como prestação de serviços públicos, discussões de pautas sobre problemas sociais, criando um feixe de respostas para demandas existentes e que precisam ser resolvidas. Ter acesso aos preceitos da cidadania é assegurar para si padrões mínimos de inclusão que sejam suficientes para o desempenho de projetos da comunidade. No campo da cidadania, temos a concessão de direitos e deveres, sendo a igualdade de todos perante a lei e o acesso de todos à justiça dois dos direitos mais básicos de qualquer cidadão. De modo geral, cidadania é o conjunto de direitos e deveres e ser cidadão é ser portador de deveres e obrigações por um lado, ao passo que também é detentor de direitos e prerrogativas previstos na legislação. Como mencionado antes, o tema sofreu forte influência após uma conferência de T. S. Marshall sobre cidadania e classe social, realizada no final da década de 1940, discussão que teve como foco, a compreensão do que é Direito Civil, Direito Político e Direito Social. Basicamente, os Civis estão ligados ao direito à vida, liberdade de ir e vir, expressão do pensamento e religião, direito à propriedade, justiça, dentre outros. Os Políticos versam sobre o sufrágio, elegibilidade, participação nos processos políticos e os Sociais refletem os direitos coletivos, a garantia de condições materiais e simbólicas, educação, saúde, segurança, etc.
Sobre este conceito, você trouxe cenas de Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento, filme utilizado em suas abordagens sobre Metodologia da Pesquisa. Qual a ilação desta vez?
Sim, como mencionei, agora noutras palavras, a cidadania é fundamentalmente um processo de construção do espaço público, tecido para criar ambientes necessários para vivência em realização plena de cada ser humano, com igualdades de condições, respeito ao que faz parte da diversidade, tendo em vista lidar com os elementos conflitivos que dominam tal espaço, como acontece com a protagonista interpretada por Julia Roberts em Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento. Sempre me perguntam se não há produções brasileiras para contemplar a temática e eu geralmente cito Ilha das Flores, Corumbiara, Garapa, Quanto Vale ou é Por Quilo? Mas, para as minhas aulas, como trabalho cidadania dentro do contexto da Metodologia da Pesquisa, Erin Brockovich acaba sendo mais assertivo. Na trama, uma mulher comum, diante de circunstâncias opressivas, redescobre o seu valor ao reingressar no mercado de trabalho e liderar uma investigação que sai do lugar comum para se tornar uma empreitada científica, com todos os erros e acertos comuns ao cidadão que precisa lidar com aquilo que lhe é novidade e que traz insegura, desequilíbrio e incertezas. É uma narrativa fantástica para debater a construção do entendimento sobre cidadania, o exercício de seus deveres e o encontro com o que lhe é de direito. Saneamento básico, acesso ao sistema de saúde, educação, acesso à justiça, dentre outros tópicos, estão presentes nas abordagens desta trama fascinante como entretenimento e pedagogicamente viável para as discussões dos temas empreendidos por aqui.
E para a discussão sobre democracia, quais são as indicações reflexivas para ampliação do repertório cultural de nossos leitores?
A democracia não é apenas um regime político com eleições livres e existência de partidos, mas também uma forma de existência social. Um estado democrático é aquele que permite o surgimento constante de novos direitos, tendo a cidadania como um campo que assegura o papel libertador e contribuinte para a emancipação humana, algo que podemos ver em No, trama que se passa em 1988, época do plebiscito estabelecido pelo governo chileno para uma convocação num ambiente de ditadura, combatida com uma campanha realizada por um publicitário que exerce a sua cidadania ao refletir sobre os direitos individuais e coletivos solapados nesta época desoladora para o Chile. Democracia em Vertigem, um dos filmes mais debatidos na época das eleições de 2018, refletiu os problemas oriundos do golpe sofrido pela então presidente Dilma Rousseff, documentário sobre a assustadora onda conservadora que tem nos imprensado, ameaçadora para o regime democrático. O Dia Que Durou 21 Anos, também sobre ameaças aos processos que regem a democracia, retrata por meios de documentos e gravações secretas, a influência exercida pelos estadunidenses para o golpe de 1964, numa produção dividida em três episódios de 26 minutos fluentes, devidamente ancoradas na organização dos fatos históricos apresentados. Indiquei também Cabra Marcada Para Morrer, de Eduardo Coutinho, narrativa sobre a morte de um líder camponês paraibano, assassinado por latifundiários, documentário interrompido em 1964, haja vista o estabelecimento da coerção do regime militar, retomada em 1981, um clássico do cinema brasileiro para debates sobre democracia e exercício cidadão.
E para nosso encerramento, alguma dica cultural ou observação sobre a linha temática?
Finalizo com as palavras de Reinhold Miebuhr: “a capacidade do homem para a justiça faz a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça faz a democracia necessária”. Precisamos da democracia, do exercício da cidadania e de uma existência onde a ética se faça presente, não como adorno, mas como algo colocado em prática. Aos leitores, debates sobre o assunto pedem introdução aos clássicos filosóficos, algo não apenas para a sala de aula, mas para a vida, por isso, as constantemente indicadas rotinas de estudos e leituras potencializam a aprendizagem destes conteúdos, algo que deve ser colocado em prática não somente no ENADE, mas também no cotidiano. Para os leitores, deixo como dica este maravilhoso infográfico sobre democracia, do site Politize. Dá só uma olhada.
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