Uma análise crítica da evolução do pagode baiano, questionando se é arte ou baixaria, e provocando reflexões sobre liberdade de expressão e impacto cultural
Tudo parecia muito inocente. Bastava chegar numa festa de família dos anos 1990 para esperar o momento em que alguém ousaria colocar um CD do grupo É o Tchan para tocar. Resultado: quase todo mundo levantava para dançar, e os que não dançavam, assistiam aos espetáculos alheios. Dizem que esta era uma época boa, inocente, dentre outras coisas. Será mesmo? Algo é certo: não havia nada de inocente. “Segurar o Tchan”, “colocar a tcheca para sambar” e acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano na produção mais recente. Mesmo que as letras não trouxessem os elementos poéticos comuns ao que se convencionou a chamar de “boa música”, a banda e o trio de dançarinos que fizeram sucesso ao redor do Brasil e de todo o planeta tinham um projeto artístico. Era uma mescla de samba, axé music e música pop, com cenografias, coreografias e outros atrativos bem interessantes.
Não é preciso ser um especialista para perceber que a sonoridade do material que grupo É o Tchan fazia naquela época não pode ser comparado ao que se tornou o pagode baiano de hoje. A mescla de sons, os arranjos de algumas canções e a interessante representação multicultural das performances de dança, mesmo com toda a duplicidade de sentidos e insinuações sexuais, não carregavam a carga de violência simbólica e desvalorização da mulher, questões comuns ao que se realiza dentro deste campo de produção atualmente, mais voltado ao processo de subjugação do corpo feminino, da humilhação aos homossexuais, com letras conectadas ao anseio pela ostentação. Diante do breve panorama exposto, surge uma questão bastante inquietante: o tão criticado e rentável pagode baiano pode ser considerado movimento artístico ou trata-se apenas de um amontoado de baixarias? Como podemos trafegar por esse caminho reflexivo sem entrar pelos atalhos perigosos do preconceito musical?
Momento de Epifania
A questão me surgiu em 2018, durante um momento de leitura em meu lar. Do lado de dentro, sentado em minha cama, me transportava para o próximo capítulo do romance Exorcismo, de Thomas B. Allen, quando me dei conta de que o som que explodia aos ouvidos do lado de fora não era apenas uma composição instrumental ruim, mas carregava uma letra extremamente curiosa. Fui até a cozinha, peguei um copo, coloquei minha água e ainda no corredor, me perguntei: é isso mesmo que estou escutando? “Senta na piroca do negão do WhatsApp”? Não satisfeito, voltei ao meu quarto, deixei o livro um pouco de lado e continuei a analisar o que escutava. A faixa já havia terminado e a música seguinte dizia algo como “vai pegar a minha foto em casa para…”. Não consegui entender o final, pois é onde habita um dos problemas da evolução do pagode baiano: não há uma boa sonoridade.
Quando digo “boa”, não estou me referindo a um piano ou qualquer outro instrumento musical oriundo do mundo erudito, mas ao som que impede que você entenda o que é cantado, tamanha a falta de equilíbrio das vozes que acompanham a aparelhagem questionável com uma percussão que mantém a mesma base do começo ao fim de um espetáculo. Sim, leitor, da primeira canção ao último momento, a estrutura de embasamento sonoro é praticamente a mesma. Como professor e crítico cultural, constantemente me encontro debruçado em torno da análise de todas as manifestações artísticas que me circundam: filmes, séries, literatura, pinturas, dentre outros. Mesmo em momentos de lazer, impossível se dissociar de uma análise.
Diante desta manifestação musical, fiz uma breve viagem no tempo, rememorei os anos 1990 e toda a ludicidade das apresentações do grupo Gera Samba, depois chamado É o Tchan. As danças, do vigor de Carla Perez, da erotização promovida pelas músicas e coreografias sensuais, e me perguntei: o que será do pagode baiano atual? Podemos comparar o que era feito antes com o desenvolvimento do pagode na atualidade? É possível criar uma reflexão sem adentrar em polêmicas? As origens estilísticas do pagode baiano nos pedem um exercício diacrônico. É preciso mergulhar historicamente no samba duro, samba de roda, ritmos do candomblé, dentre outros . Pandeiros, percussão e cavaco, instrumentos comuns ao estilo, juntamente com os sintetizadores, demonstra o som conhecido por fazer bastante sucesso em regiões periféricas de Salvador e cidades do interior, material que também é consumido por hipócritas algumas vezes, quando estes discutem o assunto com certa superioridade.
Um Punhado de História
Com ressonâncias do funk carioca e do arrocha interiorano, temos no pagode baiano uma atualização da mixagem entre os bailados indígenas e os batuques africanos, junção que é parte processo violento de colonização no século XVI. Ligado à dança o ritmo é herdeiro do samba de roda, comum no recôncavo baiano, expressão cultural coreográfica. É uma manifestação cultural que sai das senzalas e encontra as ruas após a abolição. Por isso, é um ritmo que já em suas bases, sofre preconceito e ojeriza, pois constantemente temos em nossa história os momentos de opressão diante de qualquer expressividade afro-brasileira. E é por este motivo que temos que levantar um numeroso panorama de questionamentos sobre o tema, para evitar ser taxativo e tornar a reflexão em torno do tema um amontoado de posturas taxativas e preconceituosas. Se formos observar a duplicidade de senti devemos ficar na hipocrisia e condenar o pagode veementemente, como se fosse o ponto zero da baixaria no campo musical baiano.
Lá nos anos 1980, Sarajane e a sua “roda” brincavam com o duplo sentido, assim como Luís Caldas, “pai” do axé music, também com duplicidades sonoras ao dizer que a “nega que não curte pentear os cabelos precisa ser pega “para passar batom na boca e na bochecha”. O que diferencia es manifestações dos anos 1980 e 1990 do que tem sido realizado na atualidade? A resposta é simples: a degradação da mulher, a ojeriza aos homossexuais, a perpetuação da misoginia e determinadas odes ao comportamento violento. As composições são quase sempre repetidas, como eu já disse anteriormente: seja “Rala a Tcheca no Chão” ou qualquer coisa atual do “Polêmico”. Se não teve esse desprazer, pode se nomear como uma das pessoas mais sortuda Tais composições são apenas um pedacinho da ponta do iceberg de baixarias que lançadas constantemente.
Mais uma vez, na minha profissão, ao lidar com um campo de gerações mais jovens cotidianamente, me permito conhecer estas produções e observá-las b perto. Como dito por um deles recentemente, “não me importo com a letra, mas ritmo”. Outra alegou que acha bobagem se importar com o que a letra diz, pois é somente “escapismo e uma representação da cultura de certos locais da cidade”. Diante do exposto, me questionei: será mesmo? As últimas falas analisadas foram de estudantes mulheres. E, nas letras comentadas, temos retratado as mulheres com adjetivos de baixo calão, tais como “vagabunda”, “vadia” e “cachorra”. Será que é isso que elas querem mesmo para as suas agendas cidadãs?
Lembro bem que nos anos 1990, Carla Perez, um dos maiores ícones do pagode baiano, foi comparada ao mito de Rita Baiana, do romance O Cortiço, clássico do nosso naturalismo literário publicado por Aluísio de Azevedo. Tal teorização que a relacionava com os aspectos da erotização e da sensualidade. Numa entrevista ao sofisticado “De Frente com Gabi”, a dançarina ainda muito jovem, sequer compreendia o estouro de sua carreira e a projeção de seu trabalho dentro de aspectos da representação e impacto diante do seu público jovem. Em determinado momento, a apresentadora Marília Gabriela questionou se ela conhecia uma pesquisa científica sobre a erotização de Xuxa, Angélica, dentre outras, com seus figurinos sensuais, promoviam uma possível chegada prematura da menstruação e de outros pormenores ligados ao processo de desenvolvimento da sexualidade nos adolescentes. Era um problema a ser pensado. Sim, era. Mas acho que a coisa hoje caminho muito mais tenebroso. Se na época era algo para se preocupar, imaginem agora, leitores?
As letras de pagode ganharam uma encapsulação tão baixa que a deputada Luíza (PT-BA) trouxe, em 2012, o projeto de lei que clamava pela não viabilização de verba para promover espetáculos com bandas que trabalham com essa modalidade musical. projeto foi aprovado na Assembleia Legislativa da Bahia, no dia 27 de março de 2 votos a 9. Como havia de ser, o debate dividiu opiniões. Para Moema Gramacho, “usar recursos públicos para incentivar a violência ou macular a imagem da mulher, no entanto, para o antropólogo Roberto Albergaria, representante da Universidade Bahia, tal projeto é “um precedente perigoso para a democracia”. Quem coadunou com as suas ideias foi o deputado Elmar Nascimento, ao alegar que “é preciso estar atento ao artigo 5º da Constituição, que diz ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”.
Num debate realizado em um programa jornalístico da TV Record Bahia na época, a deputada Luíza Maia e a dançarina Leokret foram colocadas para debater. Enquanto a primeira questionava a representação da mulher e a misoginia nestas letras, algumas com menções ao perigoso terreno da cultura do estupro, a segunda versava sobre o acesso dos homossexuais periféricos ao agendamento cultural da sociedade elitizada que cobra valores absurdos para espetáculos ditos “ideais”, como um caríssimo show de Chico Buarque, de Caetano Veloso ou de qualquer outro da Santidade da MPB. Durante o programa, para ampliar a polêmica, colocaram no telão alguns trechos de Caetano Veloso cantando Não Enche e a pergunta foi: ele pode, não é mesmo? Depois, tomaram o clássico Geni e o Zepelim, de Chico Buarque e questionaram: ele também? Como o leitor pode observar, são reflexões que levam mais aos questionamentos que necessariamente para afirmações incisivas. E essa é a ideia deste texto, interrogar você.
Uma das questões mais polêmicas de todos os tempos para quem trabalha com representação, crítica cultural, dentre outros, é estar diante da pantanosa pergunta: o que é arte? Na graduação, no mestrado e quase sempre no dia a dia, já assisti variados debates quase intermináveis sobre tal questionamento complexo. Lembro uma análise que trazia na epígrafe uma citação de Fernando Pessoa: “a ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são”. Diante da exposição do poeta, devemos nos perguntar: o pagode seria, sem dúvida, arte. Mas, na atualidade, a arte da baixaria, um movimento artístico onde mulheres são tratadas vadias, objetos sexuais e os homens imperadores dos seus reinos lotados de escravas sexuais, abusadas e tolhidas dos seus direitos mais básicos?
Hoje, no entanto, já temos mulheres e travestis, como A Dama do Pagode e Tertuliana, a primeira inicialmente a reforçar tudo que já havia sido feito campo de produção, mas um pouco consciente nos últimos trabalhos, e a segundos sucessos como Murro na Costela do Viado, Seu Marido Me Banca e Me Fode, Ele Cima da Prostituta, dentre outras canções “proibidonas”. Questionar o status do pagode enquanto arte não é algo complexo. A resposta é bastante simples e objetiva: sim, o pagode é arte, manifestação de sentimentos de um determinado público consumidor. O que é colocado em questão aqui, como uma preocupação social, é se queremos ou não, como cidadãos em busca de um mundo menos violento e com pessoas que exerçam devidamente a sua cidadania, consumir esse tipo de arte que geral subjuga a mulher e a coloca num lugar de mero objeto. Algumas feministas vão dizer que opção é delas escolherem isso ou não.
E você, caro leitor, o que acha? Pagode na Bahia: Baixaria ou Movimento Artístico?
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