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MPB nas reflexões de Educação para o Trânsito

A coluna Ciência, Cultura e Sociedade com o professor Leonardo Campos traz uma reflexão sobre como debater Educação para o Trânsito na sala de aula com músicas clássicas da MPB

Trânsito congestionado
Foto: Reprodução

A música não é somente uma modalidade artística para momentos diletantes. É também uma assertiva linguagem capaz de instaurar reflexões pertinentes em diversos campos de atuação. Pode ser numa sensibilização durante uma reunião de equipe no ambiente de trabalho, ou então, uma composição para retratar determinados temas selecionados para uma situação de debates. Aqui, o nosso foco é a sala de aula e a educação para o trânsito, necessária diante do nosso contexto repleto de campanhas, mudanças legislativas, mas cidadãos constantemente desconectados das posturas adequadas para uma travessia menos violenta no âmbito da intensa mobilidade urbana que permeia as nossas vidas cotidianas. A utilização de música como recurso pedagógico não é novidade, por isso, dispenso aqui qualquer reforço sobre a eficácia desta linguagem na sala de aula. É algo já senso-comum, não é mesmo?


O que me proponho é trazer três composições de períodos distintos do século XX, compostas por grandes nomes da Música Popular Brasileira, para refletirmos sobre tópicos temáticos tangenciais com a educação para o trânsito, propondo a você, caro leitor, na posição de estudante ou docente, bem como mediador de alguma instancia pedagógica não escolar, uma leitura das ações que realizamos ou contemplamos diariamente enquanto nos movemos como peças de um jogo coletivo, partes de um tabuleiro repleto de intensidades, tal como o jogo de xadrez ou dama, isto é, indivíduos que circundam por espaços diversificados lidando com o comportamento alheio, tendo sempre que se manter atento e na defensiva para evitar ser mais uma figura inserida nos relatórios dos altos e trágicos dados estatísticos envolvendo vítimas, fatais ou não, do trânsito. O recorte traz Iracema, samba de Adoniran Barbosa, Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, e o genial monumento musical intitulado Construção, de Chico Buarque. Preparados?


Começaremos com o samba. Leia a letra. Tente uma audição da música antes de dar continuidade ao texto, combinado?

Letra da composição Iracema
Letra da composição Iracema

Para quem não conhece e está acompanhando pela primeira vez, o samba de Adoniran Barbosa parece ser mais uma letra sobre as dores do amor, originadas pela postura fugaz de uma mulher contraventora, muito comum neste gênero musical. Ela se foi, o deixou de coração partido, mas por quais motivos? Não demora a compreensão. Iracema se foi, sim, mas contra os seus desejos. Ela é uma das tantas vítimas dos incidentes de trânsito, atropelada ao atravessar uma via sem olhar direito para o lado de onde vinham os carros. Parte integrante de um contexto específico de nossa evolução social, Iracema é uma personagem ainda inexperiente no cenário da modernidade, adequando-se aos processos, mas sem uma segunda chance para viver. A sua relação com o contemporâneo é interessante. Se associado com os pedestres que insistem em fazer travessias perigosas, sem utilização da faixa de pedestres ou passarelas, tais indivíduos colocam as suas vidas em perigo constante. É uma situação debatida, inserida em campanhas diversas, mas as pessoas ainda insistem em não atravessar de maneira segura por fatores diversos, dentre eles, a distância da passarela e o desinteresse em caminhar um pouco mais para garantir uma mobilidade mais segura.


Diante do exposto, Iracema é um samba sobre o luto, retrata a dor do narrador, alguém que está em sofrimento, tal como os familiares de Gaetaninho, personagem do conto homônimo da coletânea modernista Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado. O garoto da literatura e a moça da música deixam para trás a vitalidade da juventude e um rastro de enlutados. Isso fica delineado nas primeiras estrofes, com a conversa estabelecida pelo cantor. Sua fala nos lembra soluços. Ele é um desamparado na tessitura do progresso que trouxe muitas vantagens, mas destacou o quão nosso território encontrava-se na desigualdade, ainda ressonante nos dias atuais. Adoniran Barbosa define a sua perda por meio de versos no passado perfeito, numa memória ainda recente que nos deixa compreender a visão do amado de Iracema, um ser humano que lamenta a morte de sua companheira, alguém que é parte do alto preço pago pelos desdobramentos do progresso. O espaço urbano e sua transformação de acordo com os ditames da lógica capitalista ceifou Iracema, personagem musical que teve como inspiração, um atropelamento real na Consolação, algo que o chocou e culminou na composição deste samba.


Continuaremos com Sinal Fechado, de Paulinho da Viola. Observe as associações possíveis com a temática da conscientização dos condutores no trânsito.

Letra Sinal Fechado de Paulinho da Viola
Letra Sinal Fechado de Paulinho da Viola

Você, leitor, acredita mesmo que no cenário de fluxo intenso em que nós estamos inseridos, estas figuras realmente se reencontrarão? Bem possível que não. A canção Sinal Fechadopode ser pensada como uma representação da velocidade que domina o nosso cotidiano. Queremos tudo com pressa, não aprendemos a lidar com a paciência necessária para evitar que determinadas situações trágicas aconteçam, numa existência frenética que traz adoecimentos de tipos diversos, bem como perda de laços importantes para a formação de memórias que sejam intensas em nossas retrospectivas. Hoje, todo mundo se encontra correndo, apressado, preocupado com os atrasos para as suas missões cotidianas, comportamento que possui desdobramentos complicados quando versamos sobre educação para o trânsito. Este espaço de mobilidade, ambiente que nos pede atenção, segurança e firmeza na condução de si e, concomitantemente, de uma passagem que precisa respeitar e assegurar as vidas alheias das vias coletivas, é rotineiramente registrado como cenário de tragédias com vítimas de todo tipo.


Algumas fatais, outras acometidas por deficiências para o resto de suas vidas. A pressa, conhecida por ser inimiga da perfeição, é uma das tônicas deste processo. Excesso de velocidade, ao lado do uso do álcool e do celular como elemento de distração, está entre as principais causas de sinistros de trânsito, terminologia que já sabemos, substitui “acidentes de trânsito” nos artigos do Código de Trânsito Brasileiro. O semáforo, símbolo da pausa que todos precisamos realizar em nossas travessias diárias, é o espaço para o desenvolvimento da conversa coloquial entre os dois interlocutores que dialogam enquanto precisam realizar uma breve pausa no trânsito. É uma canção com elementos do gênero literário crônica, voltada a analisar a agitação das pessoas na vida contemporânea. Seu ritmo inicialmente lento, quase angustiante, vai se tornando um tanto mais ágil quando o sinal está perto de acender a luz verde, isto é, liberar para que as máquinas sobre rodas continuem a cortar as pistas da cidade. Predominantemente fática, a linguagem desta conversa inesperada no trânsito delineia o imediatismo de nossas relações num mundo que cultua e precisa da velocidade.


Não há nada de “devagar, devagarinho”, ao estilo Martinho da Vila. Aqui, o encontro entre os dois sujeitos é veloz, rasteiro, sem muito conteúdo, apenas voltado a sustentar o raro momento em que param para interagir com o “outro”. Um deles fala de sono tranquilo, isto é, o desejo da estabilidade financeira, algo que justifica a sua busca por uma vida mais amena, mas que também nos leva ao questionamento: quem não para de correr consegue assimilar as suas conquistas e deixa de se colocar em riscos diversos? Para pensarmos. Há, ao menos em minha interpretação, a possibilidade de associarmos também a ideia de sono tranquilo com pausa, descanso, momentos de diletantismo sem a vertiginosa agenda cotidiana. Trafegar cansado, com sono ou emocionalmente debilitado também é uma preocupação constante das campanhas educativas sobre os riscos no trânsito, pois é preciso um tanto de plenitude emocional para assumir a direção de um modal que pode colocar não apenas o condutor em risco, mas também a trajetória de transeuntes que dividem conosco o espaço coletivo das cidades.


Terminaremos esta seleção reflexiva com um mestre da MPB: Chico Buarque. Preparados?

Letra da composição de Chico Buarque
Letra da composição de Chico Buarque

De longa carreira no campo das artes brasileira, Chico Buarque dispensa grandes apresentações. Compositor de primeira linha, o artista vivenciou os horrores da censura ditatorial, estabelecida na década de 1960 e ressoante até os anos 1980, momentos assombrosos que os tenebrosos representantes da política contemporânea brasileira tentam resgatar em situações midiáticas vergonhosas. Mas, como o trânsito, este editorial tem os seus limites de tempo e precisamos continuar. Sem pressa, mas também direcionado tematicamente, não é mesmo? Então: Construção é uma das numerosas obras-primas do cantor. Na canção, dividida em três partes, ele delineia a precarização do trabalho na era em que os brasileiros sonhavam com as possibilidades do milagre econômico que ficou apenas no projeto. Associada com o nosso contexto atual, permite uma reflexão sobre a uberização dos serviços e a falta de segurança de profissionais como os motociclistas, parte do esquema de entrega de mercadorias que aquece a economia, mas alija tais figuras de direitos humanos básicos, fortalecendo desigualdades.


O ser humano, transformado em máquina, possui valor quando dentro da lógica perversa capitalista em seus momentos de produção, mas fora deste contexto, é só mais um a ser substituído ou um estorvo quando põe em cena os seus anseios por uma existência mais respeitada e menos oprimida. Observe a letra da canção e veja que há três instâncias geniais, devidamente estruturadas: o trabalhador sem consciência de classe, explorado pelo sistema, o trabalhador consciente e a alta classe média que, tal como sabemos, teme viver condições semelhantes aos operários que se espremem na estratificação dentro do sistema, na mesma linha do clássico O Homem Que Virou Suco, um dos pontos altos do cinema na época da composição de Chico Buarque, artista que retornava do exílio na Itália, assombrado com as mudanças no cenário trabalhista instaurada pelo danoso regime ditatorial. Na canção, a figura do operário morto em serviço é só mais uma situação corriqueira destas figuras marginalizadas, lidas como descartáveis numa conjuntura de enobrecimento cada vez maior das elites e inserção miserável intensa para aqueles que sofrem diante dos horrores do determinismo cíclico.


Aqui, leitor, não tive a intensão de esgotar a análise das canções selecionadas. É um texto provocativo, um convite para que você, numa posição crítica, amplie as significações das canções e associe com as suas leituras diante de outras modalidades artísticas e comunicacionais. Charges, tirinhas, infográficos, outras canções, filmes, peças teatrais, crônicas, contos, poemas, romances, séries televisivas, novelas e notícias jornalísticas, bem como documentos oficiais ou não sobre o assunto podem lhe conceder uma viagem intelectual revigorante, crítica e inesquecível. Adoniran Barbosa, Chico Buarque e Paulinho da Viola são três artistas pontuais para pensarmos as questões temáticas suscitadas nos meandros da música como elemento reflexivo para o trânsito e suas propostas educativas, mas ainda há muito mais a ser explorado sobre o tema. Em meu exercício cidadão, acabei de fornecer minha contribuição. E você, como pretende contemplar o assunto e fazer a sua parte?

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