Dizem que gentileza gera gentileza. No desenvolvimento do drama A Corrente do Bem, a vida não é nada gentil com o protagonista da narrativa em seu desfecho, no entanto, o legado deixado pelo jovem após colocar em prática um trabalho escolar nos demonstra como boas ações ainda podem ser possíveis num mundo colapsado por comportamentos egoístas, relacionamentos tóxicos, desigualdade social bastante violenta, dentre outras celeumas que acompanham a humanidade em seu processo evolutivo. Lançado em 2000, sob a direção de Mimi Leder, responsável por conduzir o roteiro de Leslie Dixon, dramaturga que toma como ponto de partida, o livro homônimo de Catherine Ryan Hyde, o filme nos apresenta a trajetória de um garoto cheio de ideais, influenciado pelas ideias de seu professor, se tornando responsável por colocar em prática um projeto considerado utópico, mas que funciona de maneira muito eficiente e muda a realidade de diversas pessoas que gravitam em torno de sua existência.
Na trama, o professor Eugene Simonet (Kevin Spacey) ministra um componente curricular que podemos definir como “Estudos Sociais”. Todo ano, ele aplica um projeto em suas aulas, mas como é de se esperar no âmbito educacional em escala global, a sua expectativa é que alguém apresente algo transformador, no entanto, a realidade comprova a cada período o contrário. Trabalhos repetitivos, nada inovadores, sempre focados na mesmice. Desta vez, diferentemente do esperado, há uma proposta bastante peculiar, desenvolvida pelo jovem TrevorMcKinney (Haley Joel Osment). O garoto cria uma corrente do bem, inspirado no projeto do professor que pede aos seus estudantes uma proposta capaz de mudar o mundo. Assim, Trevor pensa em algo para fazer pelo outro que não possa fazer para si mesmo. Em sua ideia, ele pretende promover uma ação para três pessoas, indivíduos que, por sua vez, fazem para mais três, e assim, em progressão aritmética, permite que o bem se espalhe por meio desta corrente.
Utópico, Trevor é desacreditado pelos colegas de sala de aula, mas observado com admiração por seu professor, alguém que inicialmente acha a proposta grandiosa demais, no entanto, abraça fortemente a ideia do estudante que rapidamente coloca o ideal em ação, para o espanto de muitos, inclusive de sua mãe, surpreendida pela presença de um estranho em casa após chegar de uma maratona de drinques servidos em seu trabalho na madrugada. O que começa com 3 parte para 9, depois para 27 e assim sucessivamente, numa progressão que sai de Las Vegas e se espalha pelos Estados Unidos, ganhando visibilidade na mídia e modificando a vida de todos que são tocados por esta corrente. Ao romper barreiras geográficas, numa era antecessora ao advento dos aplicativos e redes sociais, as ideias do jovem Trevor contaminam. Para o espectador mais exigente, focado no cinema enquanto estética e narrativa, A Corrente do Bem é puro exagero. Excessivamente dramático, é um daqueles filmes que imploram ao público por lágrimas, em especial, no desfecho trágico que tira todos os envolvidos de seus eixos.
Mas, é também uma lição sobre o quão podemos criar coisas grandiosas, mesmo numa existência turbulenta.
A vida do pequeno Trevor não é nada fácil. Ele convive com a sua mãe, Arlene (Helen Hunt), uma mulher que trabalha como garçonete nas noites de uma boate de strip-tease, além de outras funções em estabelecimentos do ramo de atendimento durante um dia, uma pessoa que batalha bastante para dar sustento ao filho, mas sequer possui tempo hábil para acompanhar os seus estudos e crescimento, algo que tradicionalmente se esperar num mundo de obrigações da maternidade. Ademais, Arlene sofre de alcoolismo e ainda tem no pai de Trevor um fantasma assombroso, prestes a reaparecer a qualquer momento, personagem interpretado por Jon Bon Jovi. Ele é um homem nocivo, com histórico de violência doméstica, criatura que pode aparecer a qualquer instante e elaborar o caos dentro de casa, medo que acompanha o garoto, mesmo com as promessas de sua mãe sobre nunca mais aceitar o indivíduo novamente, principalmente depois que Trevor testemunhou situações de agressão e ficou bastante traumatizado.
Esteticamente, A Corrente do Bem funciona assertivamente. Os figurinos de David Rosenbloom são críveis e funcionam como elemento de identificação dos personagens com as suas necessidades dramáticas e perfis. Na direção de fotografia, Oliver Stapleton consegue captar, por meio de enquadramentos eficientes, as emoções propostas pela narrativa, dando também ênfase ao design de produção de Leslie Dilley, cuidadoso tanto no ambiente escolar quanto na casa de Trevor e Arlene. Para quem possui uma compreensão básica de cinema, não é difícil reconhecer o estilo de Thomas Newman, responsável pela trilha sonora, no desenvolvimento dos 123 minutos de A Corrente do Bem, condução musical que lembra bastante os seus trabalhos em Beleza Americana e Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento, isto é, uma sonoridade condizente com o movimento visto em tela, espécie de composição didática que nos ajuda a ampliar as reflexões sobre os temas abordados pela produção. Em linhas gerais, um ótimo trabalho.
Agradando ou não enquanto narrativa, A Corrente do Bemsuscita uma série de questionamentos. É um daqueles filmes ideais para trabalhos escolares em projetos transdisciplinares ou o que chamamos de “cinema espelho” para professores assistirem em suas formações continuadas, tendo em vista refletirem sobre as suas práticas docentes. Dentro os debates, na época de seu lançamento, muita gente comentou a injustiça da lição final, pois mesmo após criar algo tão grandioso, o garoto tem a sua vida arrancada ao tentar defender um colega vítima de agressão por valentões da escola, uma realidade não apenas estadunidense, mas algo de escala global, uma das preocupações para quem vive dentro dos muros escolares cotidianamente. Para estas pessoas, quando meus interlocutores, sempre devolvo a pergunta, provocando sobre, de fato, a vida ser assim em muitos momentos, afinal, “coisas ruins acontecem com pessoas boas”, não é verdade? Ademais, a narrativa é elucidativa ao ser utilizada como reflexão de vida, em especial, para aqueles que atuam com liderança, empreendedorismo e educação.
Sempre exponho, como crítico de cinema e professor, o potencial do cinema não apenas como entretenimento, mas também como elemento motivador em diversas esferas de nossas vidas. Ao debater A Corrente do Bem, por exemplo, elucido o caráter pedagógico da trama ao permitir que professores repensem as suas práticas, mesmo em cenários de muita tensão. No personagem de Kevin Spacey, o professor responsável por ressoar os seus ideais no pequeno Trevor, podemos observar o quão o educador precisa compreender sobre a realidade dos seus estudantes, figuras que são parte de um microcosmo, sujeitos como o próprio mentor, capazes de conduzir ações, estabelecer condutas inteligentes e realização de julgamentos pertinentes, mesmo sem a especialização e formação dos docentes, algo a ser pensado numa era que ainda traz, habitados em sala de aula, profissionais que acreditam na intocabilidade de seus conhecimentos em relação ao que o estudante traz enquanto experiência, num modelo de ensino autocrático e defasado.
Ainda sobre educação, creio ser pertinente também pensar A Corrente do Bem como uma narrativa que traz um professor capaz de permitir o desenvolvimento da autorresponsabilidade de seus estudantes nas dinâmicas em sala de aula. Mesmo sendo complexo, afinal, Trevor e muitos de seus colegas são oriundos de uma região conhecida periférica da cidade, a ação demonstrada no projeto de Eugene Simonet dialoga com os princípios da cidadania, das práticas que desenvolvem habilidades e competências capazes de transformações, mesmo que pequenas, no entorno dos envolvidos, situações que ressoam em suas existências futuras. É o olhar para o mundo como protagonista, em posturas individuais capazes de estabelecimento da diferença. Trevor é um personagem desafiador, pois conduz a sua presença em aula com participação ativa, questionando quando não compreende determinadas ideias ou discorda de posicionamentos. Persistente, ele reage mesmo diante das dificuldades na execução de sua missão.
É isso, mesmo sendo demasiadamente idealista, que esperamos de nossos estudantes enquanto professores. Não é mesmo? Ao menos, conforme relatos de colegas na experiência docente, ansiamos por salas de aula preenchidas por indivíduos interessados em modificar as suas realidades, num processo que transforma a todos os envolvidos. Dentre outras discussões relevantes, A Corrente do Bem nos ajuda a pensar os nossos projetos inovadores e o impacto causado nas famílias, muitas vezes, receptores que enxergam propostas diferenciadas como coisas fora da curva e desnecessárias para os seus filhos, pessoas que em tese, deveriam aprender conceitos mais imediatos e supostamente práticos para a vida. Curioso observar também como Trevor não se importa com a nota em si, mas com o desenvolvimento de seu processo, em algo bastante debatido sobre mudanças estruturais nos processos avaliativos em voga na contemporaneidade, ainda focada no boletim como indicador de resultados.
Para uma proposta matemática, A Corrente do Bem traz reflexões sobre a lógica da multiplicação. Quantas pessoas conseguiram ser atingidas pela ação de Trevor? Em suas respectivas participações, basta que um indivíduo realize algo por três pessoas e essas três pessoas realizem algo para mais três e assim sucessivamente, adentrando na progressão geométrica e permitindo, assim, que compreendamos numericamente uma determinada situação. Aqui, temos a fase 0, constituída pela primeira pessoa da corrente, neste caso, Trevor, seguido da fase iniciada pelas pessoas que ele beneficiou e, consequentemente, os contemplados pelas ações destes beneficiados. O protagonista ajudou a pessoa em situação de rua, depois a sua mãe, juntamente com o seu professor. Por meio do lema Pay For Foward (Passe Adiante), estas pessoas conduziriam as suas ações garantindo que os demais sigam o esquema. Desta maneira, um professor de matemática, por exemplo, pode debater o filme em propostas transdisciplinares e, assim, permitir que o aprendizado seja amplificado por uma observação filosófica deste campo do saber humano tão essencial para a nossa formação escolar e cidadã.
Para uma proposta em sala de aula, você pode iniciar uma discussão posterior ao processo de exibição do filme com um mapa mental. Observe.
Para consolidação do conhecimento, numa proposta com o filme em sala de aula, o professor pode trabalhar com questões objetivas (múltipla escolha, asserção/razão, complementação simples), discursivas (com descritores que permitam a resolução de um problema), a criação de um projeto com a turma, numa ação coletiva iniciada com observações individuais, além de solicitar a elaboração de mapas mentais sobre o relacionamento das ideias do filme com lógicas de multiplicação e progressão geométrica. Ao lado de um professor de Produção Textual, o responsável por estudos matemáticos pode ampliar as reflexões com uma proposta de redação, juntamente com debates sobre o assunto em componentes curriculares diversos, tais como Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Cultura Digital, Projeto de Vida, dentre outros.
Já pensou numa articulação entre as ideias de A Corrente do Bem com debates sobre uma ação do tipo na era das redes sociais e aplicativos? É um ponto de partida pertinente para Cultura Digital, também capaz de ressoar nas propostas de intervenção de uma produção escrita. Pensado como filme para um projeto maior, as discussões sobre os limites geográficos da corrente de Trevor podem culminar numa interessante roda de conversa em nas aulas de Geografia. Para Projeto de Vida, há peculiaridades do filme que aproximam a sua narrativa das reflexões sobre como os estudantes pretendem delinear as suas trajetórias e, consequentemente, as dinâmicas de seu entorno. Assim, tem-se um instigante debate sobre construção da cidadania. Dá até mesmo para elaborar seminários onde grupos construam apresentações com suas próprias propostas para um mundo melhor, tendo tópicos como introdução, objetivos (o geral e os específicos), justificativa, problema/hipótese, processos metodológicos, dentre outros, construindo uma ponte segura entre o Ensino Fundamental e Médio com as demandas do Ensino Superior e a vida profissional dos estudantes, mais preparados e conscientes dos mecanismos da metodologia da pesquisa para melhor desenvolverem as suas respectivas formações intelectuais.
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